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MP entra na Justiça após três bugios morrerem eletrocutados na Região Metropolitana de Porto Alegre

Em apenas nove dias, três bugios morreram em contato com a rede elétrica. Dezoito estão sob cuidados médicos por tempo indeterminado. MPRS pede custeio do tratamento

Em apenas nove dias, de 7 a 16 de fevereiro, foram encontrados três bugios mortos na Região Metropolitana de Porto Alegre. Todos eletrocutados. Outros 18 estão sob cuidados médicos por tempo indeterminado, entre eles um filhote que perdeu uma pata no acidente. Pressionados pela área urbana, os macacos muitas vezes usam a fiação para se locomover. A morte dos primatas é resultado da falta de isolamento das linhas de baixa e média tensão, que permitam a passagem dos bugios em segurança.

Além dos três eletrocutados, outros dois bugios-ruivos morreram no mesmo período, um por causa indefinida e outro por ataque de cães.

Os números foram registrados pelo Programa Macacos Urbanos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que acompanha de perto a situação desses primatas na Região Metropolitana de Porto Alegre. Sempre que a comunidade encontra um bugio morto, a organização é acionada.

O volume de casos em tão pouco tempo chamou atenção do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que ajuizou, na última sexta (16), uma ação civil pública de responsabilidade civil ambiental com pedido de tutela antecipada (de caráter urgente, que tenha encaminhamentos antes da finalização do processo) contra a Companhia Estadual de Distribuição de Energia Elétrica (CEEE-D) e a Equatorial Energia – responsável pela CEEE Equatorial – para reparação dos danos causados à fauna e que sejam evitados novos acidentes por eletrocussão.

A ação foi ajuizada pela promotora de Justiça Annelise Steigleder, que há anos vem acompanhando o caso. Ela afirma que desde 2021 tem aumentado os óbitos de bugios-ruivos (Alouatta guariba clamitans), na Região Metropolitana de Porto Alegre. “Em 2022, 2023, as ações da CEEE Equatorial em relação às nossas demandas estão sendo pontuais. Quando passamos a cobrar um plano preventivo para tentar interferir no polígono de uma maneira mais consistente, proativamente, contratando pessoas, é que as barreiras no âmbito da CEEE Equatorial foram mais percebidas”. Annelise acrescenta que a empresa não se recusa a tratar um fio desencapado depois que o acidente acontece. “Mas o trabalho tem sido sempre um trabalho de reação às demandas”, completa a promotora.

MP pede plano permanente de prevenção de acidentes
Na ação, o MP pede que a própria concessionária tenha um plano permanente e preventivo de atuação nas áreas prioritárias, principalmente em torno de unidades de conservação, áreas de amortecimento e corredores ecológicos. Para proteger o bugio-ruivo, considerada uma das 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo, a ação solicita o isolamento dos fios junto aos conectores em postes e transformadores como procedimento padrão em todos os serviços efetuados na rede elétrica. Além disso, pede a instalação de pontes de dossel para travessia de fauna arborícola nos pontos de maior ocorrência dos animais, conforme mapeamento do Programa Macacos Urbanos e o histórico de acidentes.

Na ação, o MP deu valor à causa em R$1.550.000,00. Além disso, expõe a necessidade de assistência médico-veterinária para o resgate e o tratamento dos bugios que sobreviverem aos acidentes por eletrocussão. Atualmente esse trabalho é feito por voluntários, por uma clínica e pelo projeto Preservas da UFRGS. Boa parte desses animais não podem voltar para a natureza, pois podem morrer em decorrência das lesões.  

O MP quer que a CEEE Equatorial seja obrigada a custear as despesas com alimentação e tratamento médico-veterinário dos bugios sobreviventes aos choques. Quanto ao valor do dano moral coletivo, sugere-se que a indenização seja fixada em valor não inferior a R$ 50.000 (cinquenta mil reais), por indivíduo, para os casos de óbito; e de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), por indivíduo, para os casos de mutilação com impossibilidade de soltura  do bugio na natureza.

A ação pede a implantação do Plano de Ação Preventiva de Acidentes de Bugios por Eletrocussão no polígono demarcado pelo Programa Macacos Urbanos em prazo de até dois anos, sob pena de multa diária a ser fixada pelo Juízo. Também quer que a empresa comunique, em até 48 horas, a contar do momento em que se ficou sabendo do acidente, os casos de bugios eletrocutados aos órgãos competentes.  

Ainda requisita a poda da vegetação em conflito elétrico e o isolamento dos fios, conectores e transformadores, a fim de afastar a causa imediata do acidente, sob pena de multa diária a ser fixada pelo Juízo, com a apresentação de relatórios das ações efetuadas em até 30 dias.

Por meio de uma nota, a assessoria de imprensa da CEEE Equatorial afirma que propôs ao MP, dois dias antes da ação ser ajuizada, a realização de ações para a solução do problema. Entre elas, a substituição de rede com cabos nus por redes multiplexadas nos trechos com maior incidência de acidentes dentro do polígono da Zona Sul de Porto Alegre; a poda na vegetação com risco elétrico e o deslocamento de trechos de rede.

“Contudo, o Ministério Público optou por seguir com a judicialização da questão, de forma que a CEEE Equatorial foi surpreendida pela notícia do ajuizamento de ação civil pública, mas segue com suas propostas de melhorias para a área. Em 2005, a CEEE Pública já havia celebrado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), sendo um problema que se arrasta há quase duas décadas e que a CEEE Equatorial está empenhada em dar solução concreta e sustentável. Por fim, vale lembrar que a construção da rede remonta à década de 2000 e seguiu a legislação ambiental vigente à época”, informa a empresa.

Mortes e danos poderiam ter sido evitados
Mortes e danos poderiam ter sido evitados se a empresa seguisse  procedimentos que já demonstraram resultados positivos. Em 2005, foi assinado um TAC que estabeleceu uma série de medidas que praticamente zerou os acidentes com bugios na rede elétrica em torno da Reserva Biológica do Lami, administrada pela prefeitura de Porto Alegre.

Só que os rumos da concessionária mudaram nos últimos tempos. Em 2019, começaram os trâmites legislativos da privatização da estatal. Em março de 2021, a empresa foi arrematada pelo Grupo Equatorial Energia em um leilão na B3 por R$100 mil (devido aos passivos, segundo o governo Eduardo Leite).

A bióloga Fernanda Teixeira, pós-doutoranda e pesquisadora do Programa em Pós Graduação em Ecologia da UFRGS, integrante do Programa Macacos Urbanos, conta que depois do TAC, foi feito o encapamento da fiação nos pontos onde ocorreram acidentes. A antiga fiação foi trocada por uma multiplexada. “Há locais em que existe a fiação multiplexada, mas o conector com o poste não é isolado. Basta só botar uma fita isolante, uma coisa muito simples de fazer esse isolamento. Com a privatização, está tendo uma maior precarização dos terceirizados dentro da empresa. As equipes não são treinadas para fazer esse isolamento no conector com o poste”, diz.

Fernanda acrescenta que falta comunicação entre os funcionários. “Já aconteceu de um ponto ter sido apontado com histórico de choques, uma equipe vai lá faz o isolamento. Aí quando volta uma outra equipe de manutenção, essa equipe não está treinada para fazer o isolamento desses conectores. Então esse é um problema bem sério, pois falta iniciativa da CEEE Equatorial em treinar as equipes”, denuncia. Segundo Fernanda, que passou por várias fases da sua formação como pesquisadora junto ao Macacos Urbanos, já faz tempo que estão em contato pedindo providências à empresa via Ministério Público. “Aí eles sempre dizem que vão fazer. Mas só fazem na véspera de uma nova reunião, só fazem nos pontos que a gente já listou como tendo acidente. Não tem nenhuma espécie de trabalho preventivo por parte deles de fazer o isolamento em toda a área que tem ocorrência de bugio, utilizando a fiação, atravessando a rua, passando por cima dos telhados, nessa região do Lami”, diz. 

Procurada, a CCE Equatorial afirmou que a montagem da rede de distribuição “segue os padrões normativos de segurança e eficiência estabelecidos em normas técnicas”. A concessionária também afirma que “pode promover ações de isolamento adicional sempre que essas ações estejam em concordância com as necessidades do local em que a rede está instalada, seja por questões ambientais ou outras, sempre observando a necessidade de soluções técnicas para cada demanda, de acordo com as suas especificidades”.

Comunidade ajuda no monitoramento 
Segundo a veterinária Itatiele Vivian, voluntária do Programa Macacos Urbanos, o número de bugios afetados pelas redes elétricas pode ser subestimado. “Conversando com a comunidade, a gente sempre fica sabendo de mais casos. Comentam que tiveram dias em que um bugio ficou vários dias pendurado”, conta.  

Itatiele explica que o Macacos Urbanos realiza iniciativas de educação ambiental na região há muito tempo. E isso pode ser observado no retorno das comunidades. “Por grupos de WhatsApp, os moradores acabam nos passando várias informações. No Lami [no bairro onde fica a reserva biológica], a gente monitora oito grupos, com armadilhas fotográficas também, que ficam nas pontes, nas passagens de dossel,” acrescenta a voluntária.

Ela conta que poucos dias atrás, um dos moradores mandou uma mensagem informando que estava ocorrendo uma briga entre os bugios. “Daí o Godoy [Cláudio Godoy, voluntário do programa] foi lá verificar e viu que estava ocorrendo cópula, por isso havia a agitação”.

Na sexta (9), antes do carnaval, um animal levou choque, morreu e o seu corpo ficou exposto em uma avenida movimentada, na entrada do bairro Lami, que fica no extremo sul da Capital, próximo à reserva biológica. A veterinária diz que o corpo só foi retirado na quarta-feira de Cinzas (14), depois de muita mobilização, pois saiu uma reportagem em um programa de televisão local.

Sobreviventes precisam de reabilitação
Os custos do tratamento desses animais têm sido pagos pelo Programa PRESERVAS, do curso de Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Clínica Veterinária Toca dos Bichos. No momento, há 11 bugios na UFRGS e sete na clínica.

Para ajudar na arrecadação de doações para pagar o que se gasta hoje nos cuidados com os bichos, a clínica criou a ONG Voluntários da Fauna.

Conforme estudos dos pesquisadores do Macacos Urbanos, o preço dos cuidados por indivíduo, ao longo de 15 anos, chega no valor de 45.100 dólares (aproximadamente 225.500 reais na cotação atual). O PRESERVAS informa que o custo médio para três meses de tratamento dos bugios sobreviventes é de cerca de nove mil reais por indivíduo. Esses são os valores que servem de parâmetro para a fase de liquidação de sentença.

Macacos urbanos: 30 anos de olho nos bugios
O Programa Macacos Urbanos foi criado em 1993 por alunos da Biologia da UFRGS. Durante esse período, diversos projetos foram realizados relacionados à conservação do bugio-ruivo em Porto Alegre e Viamão, onde há ocorrência maior da espécie, nativa da Mata Atlântica.

Além de voluntários, duas bolsistas do curso de Biologia, uma de extensão e outra de iniciação científica se dedicam ao estudo do contexto do animal.

A pesquisa da bolsista de iniciação científica Danielle Backes mapeou acidentes com bugios-ruivos nos arredores das Unidades de Conservação de Porto Alegre e Viamão. Ao todo, entre 2018 e 2023, foram identificados 160 registros de acidentes com a espécie. Em 97 deles foi possível identificar a causa, sendo a principal delas em decorrência de choques elétricos (51,5%), seguido de ataques de cães (26,8%) e atropelamentos (11,3%).

Em 35 locais onde houve eletrocussões foi constatada a necessidade de podas da vegetação junto a rede de média tensão (60%), substituição da rede de baixa tensão por cabos multiplexados (46%) e isolamento dos conectores junto a postes ou transformadores (37%). Esses dados foram utilizados como embasamento para a ação civil pública. Os locais com maiores incidências de acidentes foram registrados no entorno da Reserva Biológica do Lami e no Refúgio de Vida Silvestre São Pedro, ambos em Porto Alegre; e do Parque Estadual de Itapuã, em Viamão.

No Grupo Viveiros Comunitários da UFRGS são desenvolvidos ainda trabalhos sobre os corredores ecológicos. O professor de Botânica da UFRGS, Paulo Brack, explica que os bugios são excelentes dispersores de sementes de árvores nativas, como figueiras, pitangueiras e mais de meia centena de espécies de plantas nativas autóctones, sendo algumas também ameaçadas de extinção.

 

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